Archives

June, 2013

Olhar Obtuso

Olhar obtuso

* texto publicado na Revista La Cabeza, número 8, Madrid: Maio de 2011

Vivemos em meio a um tsunami de imagens, um universo em expansão constante e incontrolada. Os novos dispositivos de captura, em especial as câmeras digitais, geram uma abundante e excessiva oferta. Há apenas duas décadas, não se poderia imaginar as possibilidades fotográficas disponíveis agora para o usuário. A rápida evolução do meio digital propõe uma nova forma de construir mensagens visuais, o que pode haver mudado radicalmente a forma de entendê-los.

A fotografia nasceu como consequência de uma cultura visual a que também ajudou a fortalecer e impor e nunca foi tão acessível nem onipresente. Está composta pela combinação entre seu desenvolvimento tecnológico e seu uso, e se define pelo equilíbrio dessa relação. O processo ocorre no tempo e está em constante revisão. Depois da euforia do último quarto do século XX, era da intensificação do vício pela imagem fotográfica, é hora de averiguar se, além das mudanças tecnológicas no produto que se segue chamando fotográfico, sua função social também mudou.

A velocidade e a globalidade da produção e propagação de imagens digitais motivam discussões sobre uma possível morte da fotografia, ou pelo menos do seu conceito standard construído no último século. Mas é possível que, apesar da indiscutível liberação do direito à imagem, a cultura digital tenha gerado também mudanças de conduta social e ordem psicológica no que diz respeito à percepção visual do homem contemporâneo.

Em retrospectiva, a explosão da oferta remonta aos inícios da era metropolitana, quando houve um incremento nos diferentes procedimentos de criação e vias de transmissão do universo visual. A fotografia surgiu quando a manufatura cedia lugar paulatinamente à empresa industrial e, naqueles dias, o surgimento de diferentes classes sociais, até então inexistentes, provocou a necessidade de produzir tudo em grandes quantidades. O dispositivo fotográfico oportunamente se ajustava à demanda.

Historicamente, a cristalização repentina de uma nova tecnologia é causa do antagonismo entre a crença no progresso e uma certa suspeita e receio. Com o surgimento da fotografia não foi diferente. Por um lado, equivalia à prova inegável de um fato, o suporte de uma evidência. Por outro, levantava dúvidas quanto à sua relação com o real. “Menos que nunca a simples reprodução da realidade consegue dizer algo sobre a realidade”. Se fosse vivo, Bertold Brecht se daria conta da atualidade do seu veredicto.

A tecnologia digital elimina de alguma maneira a capacidade de uma fotografia em gerar representações exatas e verídicas da realidade. Hoje em dia, não só os especialistas, mas também o público em geral descobriu a inevitável manipulação que opera no processo de toda imagem fotográfica. O uso de softwares de tratamento de imagens, como o Adobe Photoshop, com sua enorme facilidade de utilização, substitui a técnica do aerógrafo e da fotomontagem e sua assimilação entre o público inexperiente acaba com o mito da objetividade fotográfica. Mais que nunca a percepção da realidade depende do instrumento que se utilize para percebê-la e em meio a dados numéricos intangíveis o conceito de inocência da câmera pode ter mudado radicalmente sua essência. A verdade se converteu em uma analogia e cada vez mais os fotógrafos apresentam diferentes versões de realidade.

Ao comparar a era atual com a época da invenção da fotografia, quando as imagens eram limitadas em número, circunscritas em um significado e contempladas com atenção, podemos concluir que hoje em dia, mais que contemplar, consumimos. Estamos inundados de imagens, o que supõe uma maior consciência informativa da realidade global, mas também pode gerar impressões visuais carentes de significado. Entre a velocidade da Internet, os telefones celulares e os dispositivos eletrônicos portáteis, a análise da realidade objetiva sofre o caos da excessiva oferta de imagens. O teórico francês Paul Virilio fala da mecanização da percepção. O computador assiste a percepção e a Internet gera a vontade de ver tudo, saber tudo, a cada momento, em cada lugar. Mas o raciocinar sobre o que é visto já é outra história.

            Entretanto, ver tudo é também uma grande exigência do mundo atual, mas frente ao abuso visual e ao volume de transmissão, o cérebro pode ter sido privado de uma de suas atividades mais lúdicas: a imaginação. Italo Calvino, em suas Seis propostas para o próximo milênio, fala sobre a projeção interna de imagens como parte do processo de interpretação e expressão. Estas imagens pessoais são apoiadas em reflexos interiores da tradição oral. Formam campos de analogias que, ao serem organizados, geram um sentido crítico na consciência. A força dos meios digitais está em conflito com uma capacidade humana conhecida desde o eidos de Platão: o pensar com imagens, o que não pode ser visto com os olhos, o que conhecemos porque temos a ideia em nossa mente, não pela realidade do objeto.

Paradoxalmente, hoje em dia um suporte físico já não é imprescindível para que a imagem exista. Mas longe da imaginação, as exigências do mundo atual são satisfeitas pela imagem eletrônica com a imediatez do trânsito de informações e a globalidade, onde distâncias geográficas colapsam em tempo real pela world wide web.

Em contraste ao discurso linear obtido pela fotografia analógica, o discurso democrático da imagem digital na Internet é constituído por uma infinidade de caminhos possíveis, através de links que levam a distantes e desconhecidos destinos. Uma versão eletrônica da Biblioteca de Babel, de Jorge Luis Borges: todos os livros possíveis, ordenados de forma arbitrária, mas sem ordem pré-determinada de pesquisa. Nesse ambiente, se consideram fotografias as imagens geradas através de todos os tipos de câmeras, satélites e mísseis, câmeras de vigilância e webcams, scanners e telefones celulares. O computador padroniza a especificidade de cada meio, gerando uma crise na função de registro.

Como acontece frequentemente nos meios de comunicação visual, a crise é um sintoma de renovação. Eu sou uma vítima da luta entre a adesão à tecnologia e a convenção analógica. Talvez por medo de perder a capacidade de imaginar visões ainda encontradas no Google, ou por medo de sucumbir à velocidade vertiginosa do fotografar-ver-apagar. A imagem digital gera o completo controle do resultado, ao contrário da imagem analógica, imprevista e intuitiva, que tanto me emociona. Mas também sou ciente de que as representações da identidade contemporânea estão intrinsecamente ligadas às novas tecnologias da imagem. A quantidade de oferta que se consome diariamente pode permitir que a fotografia realize funções sem precedentes e ainda pouco conhecidas.

A principal mudança na percepção visual é, sem dúvida, a facilidade de um diálogo aberto em que o espectador participa e divide a dinâmica criativa. Resta uma análise dos efeitos reais e imediatos na assimilação do atual fluxo de informação visual. O sujeito contemporâneo é um passageiro metropolitano e a velocidade com que passa pelo mundo determina não só o olhar, mas também como as coisas se apresentam frente a ele. Nossa identidade é construída pela indústria da cultura digital, que entrega o olhar como produto final e não como o início de uma interpretação. Para virar o jogo, devemos exercer o olhar do estrangeiro, que recém chegado a um lugar resgata o sentido primeiro das coisas, começando do zero.